Legalidade: Uma Trincheira Indispensável
Legalidade: Uma Trincheira Indispensável
por Antonio Araldo Ferraz Dal PozzoUma das fontes históricas nem sempre consideradas, mas que talvez seja das mais importantes é o direito positivo, sua concepção e sua evolução através dos tempos. Essa visão clarividente tomou corpo na magnífica obra do saudoso Professor Miguel Reale “Horizontes do Direito e da História”.
O legislador, como autorizado intérprete das tendências sociais, políticas, econômicas, éticas e religiosas de sua época, vai escrevendo na legislação, de maneira indelével, o retrato de seu tempo.
No começo da década de 90, isto é, na aurora do novo Estado Democrático de Direito Brasileiro, coube ao Ministério Público a tarefa de se reorganizar sob as luzes dos princípios que então passavam a viger. Dentre eles, os mais importantes: o da segurança jurídica, da ampla defesa, do contraditório, da confiança legítima, da publicidade, da legalidade e aqueles outros referidos expressamente pelo art. 37 da Constituição Federal.
Pudemos contribuir com o anteprojeto da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, quando ocupávamos o cargo de Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, o qual se converteu na Lei Complementar nº 734, de 26 de novembro de 1993.
Dando vida aos princípios referidos, a Lei Complementar, por exemplo, criou o recurso contra o arquivamento de inquérito policial ou de peças de informação determinado pelo Procurador-Geral de Justiça, dirigido ao Colégio de Procuradores (art. 117). Também foi instituído o recurso ao Conselho Superior do Ministério Público, em face da instauração de inquérito civil (art. 108).
Nesse mesmo diapasão, houve a regulamentação básica do inquérito civil, complementada por Ato Normativo do Colégio de Procuradores, nº 484/2006, alterado pelo Ato de nº 531/2008. No Ato Normativo há a enumeração dos princípios que devem nortear a atividade investigativa do Ministério Público, dentre os quais destacamos: (i) o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana; (ii) o respeito à ética e (iii) publicidade (art. 7º).
No tocante a este último princípio, o Ato cria uma exceção: “ressalvadas as exceções disciplinadas no ordenamento jurídico para tutela do interesse público, da segurança da sociedade e do Estado e da intimidade e da privacidade” (art. 7º, IX).
De outra banda, o Ato Normativo e a Lei Orgânica Estadual prescrevem que o inquérito civil poderá ser instaurado em face de representação (art. 106), desde que preencha os seguintes requisitos previstos em seu artigo 107, tais como o nome, qualificação e endereço do representante e, sempre que possível, do autor do fato; a descrição do fato objeto das investigações e a indicação dos meios de prova.
Apesar da claríssima dicção da Lei e da enumeração dos princípios que devem nortear os atos investigatórios do Ministério Público – além, é evidente, dos que informam o nosso Estado de Direito Democrático – vem se tornando praxe a aceitação de representações anônimas, em claro desrespeito aos direitos do indigitado autor do ato ilícito, que mesmo inocente, não terá como se voltar contra seu desconhecido detrator.
Não é tudo. O Ministério Público, muitas vezes, não se apercebe haver se transformado em instrumento de revanchismo político. Ao constatar essa circunstância (até pelo número de representações e pelo partido político do representante), deveria investigar também os atos praticados pelos denunciantes ou seus correligionários – que certamente já estiveram no Poder – para contrabalançar as coisas e demonstrar que não tem partido nem predileção, preservando sua imparcialidade, exigida pelo citado Ato Normativo (art. 7º, II, in fine).
Outra prática que em nada colabora com a transparência e imparcialidade de sua atuação é a divulgação de depoimentos de “testemunhas protegidas”. Aliás, desconhecemos a base legal dessa figura, que está muito além do âmbito da Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, que cuida de assunto análogo, mas com tratamento totalmente diverso.
Tomar depoimento sigiloso e procurar comprovações do que lhe foi dito é a atitude correta. Mas, enviar esse depoimento ao indigitado autor do ilícito, pedindo-lhe explicações, sem a identificação do depoente, é uma violação ao princípio da ampla defesa e do contraditório que, no caso, têm pertinência mesmo num procedimento investigatório, conforme o art. 5º, LV, da Constituição Federal.
Não há dúvida de que a Instituição do Ministério Público tem colaborado para que possamos ter um País melhor, longe da corrupção e dos desmandos. Porém, não pode deixar a trincheira da legalidade absoluta, sob pena de cair no extremo oposto.
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